Cohen, Peter (1992), Junky Elend: Some ways of explaining it and dealing with it. From a pharmacological explanation of junky behaviour to a social one. Wiener Zeitschrift für Suchtforschung, Vol. 14, 1991, 3/4. pp. 59-64. June, 1992.
© Copyright 1992 Peter Cohen. All rights reserved.

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Junky Elend. Algumas propostas de explicação e resolução

De uma explicação farmacológica para uma explicação sociológica do comportamento junky

Peter Cohen

Nesta apresentação irá tratar-se da seguinte questão: porque é que os consumidores abusivos de opiáceos e outras drogas se apresentam regularmente como "junkies"? E por que é que a "miséria" junky ("junky elend" como dizem os alemães) parece ser diferente quer na intensidade quer nos efeitos quando observada em diferentes países. Com "junkies" quero referir as pessoas das quais darei uma definição típica ideal, (estereótipo) por meio de um conjunto de características. Todas estas podem ser observadas num caso ou noutro. A sua qualificação exacta permanece um assunto onde imperam as tendências pessoais. As características normalmente são: uso regular de drogas de tipo opiáceo e outras substâncias lícitas e ilícitas, vestuário deteriorado e/ou imundo, baixos padrões de higiene pessoal, apresentando às vezes alguma dificuldade em entender imagens da realidade, ou formas de raciocínio. Outras características que revelam a "junkificação" poderão ser os baixos padrões de nutrição, a inexistência de habitação ou condições de habitação muito más, o envolvimento em actividades socialmente marginalizadas para adquirir algum dinheiro, como a prostituição ou outros trabalhos na indústria do sexo, assaltos sem grande significado e assaltos a pessoas idosas, e, em casos raros, formas de criminalidade manifestamente gravosas e agressivas. Claro que este tipo de consumidores de drogas, os junkificados, são os mais visíveis, sendo esta a razão pela qual a nossa percepção selectiva nos leva facilmente à conclusão de que todos os consumidores abusivos de opiáceos se assemelham a este estereótipo. O termo "miséria junky" refere-se à angústia sentida subjectivamente pelos consumidores de droga a qual pode ser uma das bases para os suicídios que se verificam nesta categoria.

Gostaria de discutir aqui algumas das formas que nos podem ajudar a entender a etiologia de tais estilos de vida. Como é que as pessoas podem acabar por ficar nessa situação, e qual o papel desempenhado pela heroína ou outras drogas [1]. Em resumo, estou interessado em explicar a "junkificação" de alguns consumidores de droga.

Fui confrontado frequentemente com uma interpretação padronizada para compreender este fenómeno, a qual é enunciada mais ou menos da seguinte forma: estas pessoas consumiram heroína, e como todos nós sabemos, viciaram-se muito depressa no seu consumo. Para satisfazer as suas necessidades de droga, primeiro, começaram por esgotar todos os recursos financeiros e materiais de que dispunham. Depois dos seus recursos originais desaparecerem, começaram a roubar os seus familiares e outras pessoas. Acabam frequentemente por ir parar à prisão, e encontram-se presos numa espiral descendente até chegarem a junkies. Os profissionais prestadores de cuidados no âmbito da medicina dão muitas vezes explicações bastante mais sofisticadas. Os fundamentos são aproximadamente os mesmos, mas os elementos desta classe também referem com frequência a existência de uma patologia mental nas pessoas em causa. Para eles será a combinação do consumo abusivo de drogas e da patologia mental que causam a queda social

Para encurtar uma longa história, podemos resumir a interpretação básica da junkificação como consequência dos efeitos da própria substância, uma explicação mais ou menos farmacológica. Por vezes esta explicação farmacológica é tornada mais "científica" fazendo referência a estudos com ratos ou macacos nos quais os animais que tomaram repetidamente uma droga acabaram por deixar de comer e morreram. Esta interpretação básica não muda muito se for vista como consequência dos efeitos da substância, em conjunto com algum processo psicológico no consumidor. É aceite que o processo psicológico (frequentemente de natureza patológica) contribui para a escolha do consumo de algumas drogas ou para a decisão de continuar com tal consumo. As teorias de auto-medicação são um exemplo disso.

Por mim prefiro abandonar a perspectiva farmacológica e olhar o fenómeno da junkificação de um ângulo diferente com o fim de poderem ser dadas outras explicações plausíveis para este fenómeno. A inspiração para esta posição provém de uma observação que hoje em dia é frequente: a junkificação dos consumidores abusivos de heroína ou de cocaína parece acontecer com menor frequência e talvez mesmo com uma frequência muito menor, nos Países Baixos do que, por exemplo, na Alemanha ou na Suíça. Num estudo recente efectuado em mais de 200 consumidores abusivos de heroína em Amsterdão, Korf verificou que, em geral, a condição destas pessoas oscila entre razoável e boa. [2]

Na Alemanha e na Suíça, a "miséria junky" (Junky Elend) é frequentemente tão dramática que deu origem a recentes discussões sobre mudanças na política das drogas nesses países. Na Suíça, a miséria associada às drogas sob a forma de uma grave e massiva junkificação, ganhou uma relevância tão grande nos discursos dos políticos governamentais que recentemente o Governo Federal propôs o inicio de uma distribuição experimental de heroína entre toxicodependentes, sendo este o único governo que eu tenho conhecimento com tal reacção. Na Alemanha o número ascendente de mortes relacionadas com drogas e os perigos de infecção por HIV parecem apoiar uma atitude menos inflexível para a distribuição de metadona. E em Hamburgo parece desenvolver-se uma certa perda da rigidez na repressão policial do consumo.

Tais modificações na política das drogas são claros exemplos da forma como as autoridades adoptam as explicações da "miséria junky". Pode dizer-se que em ambos os países as mudanças na política das drogas foram no sentido de dar aos junkies as drogas (ou substâncias de substituição) que eles pretendem. Ao mesmo tempo podemos reconhecer que tais modificações se deram ao nível que as autoridades sentem ser a principal causa do problema: (escassez da droga). Tomando a droga mais acessível numa base regular e supervisionada por pessoas responsáveis, talvez fosse possível reduzir a "miséria junkie".

Porque o problema da droga tal como interpretado por muitos políticos está relacionado com a droga consumida, poderíamos dizer que a interpretação do problema central da droga, e as interpretações de como lidar com ele são farmacológicas. Isto confirma o que nós há pouco vimos como sendo a explicação padronizada da junkificação. Ao mesmo tempo, para muitas pessoas tal mudança na política das drogas não é compreensível, e muitos sentem uma oposição moral. De acordo com os oponentes às políticas de distribuição de drogas, parece existir uma falha na argumentação. Eles dizem que o raciocínio básico que suporta a distribuição de drogas às pessoas que delas necessitam, é que assim podem deixar o tipo de vida a que foram forçados devido ao seu consumo. Assim sendo, será loucura dar-lhes droga. Lembro-me muito vivamente dos argumentos insistentes dos profissionais que se opunham à distribuição de heroína em Amsterdão, afirmando que : "ninguém daria álcool aos alcoólicos para os ajudar". O culminar deste raciocínio analítico e a incompreensão da 'miséria junky' eram com muita frequência o bastante para dar aos políticos favoráveis à distribuição de heroína uma expressão facial de desespero absoluto e impotência fáceis de compreender. Se aceitarmos, implícita ou explicitamente que a causa do comportamento junky está localizada na substância consumida (com ou sem a complicação de uma patologia mental), dar essa mesma substância aos consumidores junkificados parece imoral e indefensável. Por vezes ouvimos que há pelo menos uma vantagem na distribuição de heroína ou de metadona, é que as pessoas já não terão que se prostituir, ou roubar para adquirir esses produtos. Mas os puritanos da "ajuda aos drogados" replicarão que esse é só um argumento egoísta concebido para aliviar os cidadãos de alguma criminalidade. Não tem nada que ver com ajudar o viciado, quanto mais com curá-lo. Compreender a interpretação das razões que levam os drogados à junkificação é muito importante para a criação de estratégias de ajuda.

Numa interpretação psicológica do uso de drogas ilícitas e/ou junkificação a "cura" é encarada como uma reestruturação psicológica completa do consumidor de droga. A sua personalidade terá que desaparecer e ser substituída por uma personalidade não consumidora de droga. Nesta interpretação do problema a miséria junky é uma força positiva porque confronta o drogado com tanta tensão e miséria que ele, em ultima instância, aceita o tratamento psicológico projectado para ele. Para mim, esta abordagem do problema é bastante desagradável. Alguns dos mais brutais dos chamados tratamentos encontram nesta abordagem a sua legitimação. Ela faz troça das observações às vezes válidas que, para alguns dos consumidores abusivos de drogas, o consumo de drogas e algum tipo de problema neurótico ou até mesmo psicótico podem influenciar-se um ao outro. Em lugar de uma análise cuidadosa e ajuda individualizada adequada a cada caso (como é comum em todos os outros ramos da medicina e da intervenção social), nós às vezes vemos fábricas de reconversão de drogados disfarçadas sob a forma de comunidades livres de droga onde geralmente é oferecido um tratamento indiferenciado a todos os seus elementos.

Uma construção socio-psicológica e sociológica da miséria junky

Como introdução a uma abordagem diferente do problema da junkificação gostaria de olhar por um momento para a moderna teoria sociológica da pobreza. Em muitos países ocidentais industrializados a evidência aberta da pobreza está a tornar-se um problema. Apesar de todos os tipos de medidas aplicadas na ajuda aos pobres, parece que a pobreza não está em declínio, mas sim, pelo contrário, em ascensão. A maioria dos que já visitaram os Estados Unidos sabem que deixando os limites da "boa" parte da cidade a paisagem urbana modifica-se dramaticamente. E por vezes, até mesmo as melhores partes da cidade estão actualmente perturbadas pelos pobres que vivem em estações de metro, centros comerciais e parques. Na maioria das cidades europeias a pobreza é menos abundante mas não está ausente. A importância do tema é tão grande que se tornou num campo específico da investigação científica

As reflexões modernas sobre pobreza podem ser usadas nas discussões sobre a miséria junky. Com base no estudo da literatura sobre a pobreza e nas suas próprias investigações empíricas, Engbersen define algumas características essenciais da pobreza moderna.

  1. Pobreza significa insuficiência de recursos para sobreviver. Nessa apreciação são incluídos não só os recursos materiais mas também os sociais, como os meios para comunicação, meios que suportem as relações sociais pertinentes e meios para fazer uso dos recursos institucionais básicos como a educação.
  2. A pobreza está a ser excluída dos círculos sociais dominantes.
  3. P3. A pobreza é constituída por privações múltiplas, que deveríamos entender como uma acumulação de insuficiências. As pessoas têm dívidas, não têm emprego, não têm perspectivas inspiradoras relativamente a mudanças da sua situação, não têm educação, têm problemas de saúde e nenhum apoio social. "Os que apresentam uma má situação a estes níveis estão em situação de pobreza" [3] (Engbersen 1991, página 11), da qual resulta uma incapacidade estrutural para superar tal condição.

Uma das características mais deprimentes da pobreza moderna parece ser a sua dependência relativamente às instituições governamentais. Qualquer recurso que as pessoas pobres conseguem mobilizar é frequentemente mediado através de instituições estatais. Pelo menos nos Países Baixos é este o caso. E devido ao facto das instituições estatais terem de sobreviver com recursos cada vez mais escassos, existe muita pressão por parte dessas instituições no sentido de diminuir a sua participação nas vidas dos pobres que estão a seu cargo. Deveríamos acrescentar também como um elemento na vida dos pobres a tensão constante. Lidar com privações contínuas em muitas áreas da vida é um indutor de tensão, que por si própria é uma força muito destrutiva na vida dos desprivilegiados.

Voltemos agora ao nosso tópico, a existência da junky elend e a sua explicação. A vida dos junkies é caracterizada por muitos, ou mesmo todos, dos requisitos essenciais para definir a vida dos pobres ou dos desprivilegiados. Relativamente a algumas características poderiam mesmo atingir níveis mais elevados que os verificados nos pobres "normais". Certamente que no que respeita à exclusão social, o nível atingido será extraordinariamente elevado na maioria dos países. O mesmo pode ser dito relativamente à ausência de redes de apoio social, e à falta de perspectivas futuras. Em termos de dependência estatal, é evidenciado por esta população um nível muito elevado de contactos com a polícia, com instituições médicas e com outras agências de supressão (da "droga"). Com frequência, estas agências "ajudam" ou "resolvem" o problema da dose de droga de um junky. Assim, poderíamos considerar que a vida de alguma proporção de consumidores abusivos de drogas (os chamados junkies) é caracterizada por privações múltiplas que atingem um nível até mais elevado que o verificado nos outros pobres. Logo, a sua situação social será mais repleta de problemas diários do que a verificada com outros desprivilegiados presentes na nossa sociedade. Como vimos, uma das características essenciais de pobreza é a incapacidade de superar um estado de pobreza que se auto perpetua, e que ocorre quando se desce abaixo de um certo nível de pobreza.

Uma das suposições deste estudo é que os níveis de junkificação e a junky elend que dela resulta nos diferentes países, não são os mesmos, e que o nível verificado na Holanda aparenta ser menor do que o verificado nos países à sua volta. Agora o problema que temos de resolver consiste em descobrir uma explicação para esta situação. A solução mais fácil para este problema será afirmar que já que ninguém alguma vez mediu os níveis da junky elend nos vários países recorrendo a instrumentos objectivos, o problema não pode ser discutido de modo satisfatório. Cientificamente não há nenhuma base para afirmar que, por exemplo, a Alemanha e a Suíça têm níveis mais altos de junky elend que a Holanda. Tendo a concordar com tais afirmações. Claro que há um facto conspícuo já que as mortes relacionadas com drogas nos Países Baixos têm diminuído, enquanto que na Alemanha e na Suíça o seu número está a aumentar. Mas isto pode ser apenas uma interferência devido aos diferentes critérios de cálculo das mortes relacionadas com droga, e algumas vezes devido às modificações ou complexidade da base do diagnóstico das mortes relacionadas com droga no geral. Mesmo assim, e para além dos dados que possuímos das pesquisas efectuadas sobre os junkies de Amsterdão, tenho sido confrontado frequentemente com observações de diversos técnicos e peritos no âmbito das drogas que simplesmente afirmam que segundo a sua experiência a junky elend é menor nos Países Baixos do que noutros locais. Tais observações provêm quer de observadores holandeses quer de observadores estrangeiros. Este estado primitivo do nosso conhecimento comparado sobre o nível da junky elend nos diferentes países europeus só desaparecerá se decidirmos fazer pesquisa comparada sobre este assunto. Até que tal pesquisa seja feita, ou consideramos impróprio falar de "níveis de junkificação", ou tomamos como ponto de partida um conjunto de observações que não são propriamente científicas, e que estão ainda carecidas de verificação. Por enquanto, prefiro assumir que a miséria junky é menor na Holanda do que na Alemanha ou na Suíça, de modo a trabalhar na concepção de um modo de observar este problema que no final possa permitir uma explicação empiricamente testada. Isto significa que teria de decidir-se sobre variáveis que teriam de ser medidas por forma a verificar empiricamente as suposições e subsequentes explicações.

Comecemos por investigar algumas variáveis relacionadas com a própria droga, neste caso a heroína. [4] Começamos pela quantidade de heroína consumida. Podemos observar que o seu preço e a sua qualidade é muito diferente entre os países mencionados. Em Amsterdão o preço da heroína em pó, com uma pureza entre os 20-40%, ronda os Hlf 100 por grama. Em Hamburgo a heroína é aproximadamente três vezes mais cara, e em Zurique é aproximadamente seis vezes mais cara, sendo menos pura nos mercados negros locais. Isto significa que se a pessoa se integra completamente no estilo de vida de junky, muito provavelmente a quantidade de substância activa consumida pelos junkies na Alemanha ou a Suíça não será maior do que a consumida na Holanda. Poderá mesmo ser menor (ref. feita a dados de Leuw e Korf). Para além disso, a metadona está facilmente disponível ao junky holandês, também nas ruas no que se chama o mercado cinzento da metadona. Assim sendo, em média, o nível de consumo de opiáceos poderá ser mais alto na Holanda que nos outros dois países. Continuando, nós trabalhamos com a suposição de que os junkies holandeses são de longe menos "verelendet" do que os de outros lugares. A própria substância não consegue explicar esta diferença. Porque, se fosse a própria substância a conduzir à miséria junky, poderiam ser observados os mesmos níveis de junkificação nos Países Baixos que em qualquer outro lugar. E nós vimos um pouco de plausibilidade na suposição de que devido ao seu preço mais baixo, pureza mais elevada e fácil acesso à metadona, o nível de consumo de opiáceos pelos "junkies" na Holanda poderia ser até mesmo mais alto. Como tal, se os opiáceos fossem a causa do comportamento junky, deveríamos esperar níveis mais elevados de junkificação nos Países Baixos.

Talvez a proporção de consumidores por via endovenosa e as condições sociais em torno desse modo de administração expliquem algumas das diferenças. Sabemos que em Amsterdão aproximadamente 28% dos consumidores fazem o seu consumo por via endovenosa, injectando-se, e o resto fuma heroína à maneira chinesa (Korf et al., 1990). No resto dos Países Baixos, a proporção dos consumidores não intravenosos abusivos é pelo menos igual, se não superior [5]. Mais ainda, os materiais de injecção esterilizados são de muito fácil acesso. Isto significa que os riscos decorrentes da injecção acontecem necessariamente menos nos Países Baixos, do que na Alemanha ou Suíça onde existe uma proporção mais elevada de consumidores intravenosos e onde o equipamento de injecção esterilizado é disponibilizado de forma limitada. Os riscos de injecções com materiais não esterilizados, como endocardites, abscessos, hepatites e HIV, são graves e afectam alguns consumidores em tal grau que provocam o desenvolvimento de um nível que degradação física e mental incrível. Num país onde as condições sociais em torno do consumo de droga por via intravenosa é muito desfavorável, como na Alemanha e na Suíça, e onde proporções muito elevadas de consumidores abusivos se injectam, a injecção pode de algum modo explicar uma parte da diferença da miséria junky entre os países que estamos a considerar.

Podemos agora mudar de perspectiva e observar alguns aspectos sociais da miséria junky. Para começar, as condições desfavoráveis a uma administração intravenosa asséptica não são factos objectivos de natureza material, mas sim estados socialmente interpretados. Isto significa que, teoricamente, numa situação socialmente bem organizada os consumidores intravenosos de drogas nunca teriam necessidade de se injectar de forma primitiva ou com materiais não esterilizados. As injecções intramusculares, embora menos difíceis que as intravenosas, praticamente não causam problemas nos pacientes com diabetes que se auto-injectam. É também de considerar que os baixos preços de heroína e uma disponibilidade mais alargada tornam mais fácil ao consumidores abusivos de heroína evitar o uso intravenoso de drogas. Isto resulta também de uma certa política, que discutirei um pouco mais tarde.

Mas, há outro tipo de aspectos sociais da junkificação, os quais são fundamentados num tipo especial da interacção social geral entre os membros 'normais' da sociedade e os junkies. Eu ainda apoio a visão de Zinberg de que a junkificação poderia ser entendida como uma consequência normal da privação de estímulos (Zinberg and others [6] ref. a Cohen 1984, em Cohen 1990). Forçando os consumidores abusivos de heroína a viverem graves situações de ostracismo e associabilidade, os seus modos de se relacionar com o mundo social em seu redor mudarão. Uma das consequências do ostracismo é que muitos dos consumidores já não são vistos como pessoas normais a quem são requeridos comportamentos normais. Por sua vez, os consumidores abusivos verificam que mesmo que se comportem normalmente isso terá pouco efeito no modo como são tratados. O seu comportamento é encarado com enorme desconfiança. Logo, os consumidores dizem adeus às velhas regras de comportamento porque estas regras não são produtivas para eles. Observar ou não observar a regras sociais básicas fará pouca diferença e serão sempre vistos como marginais. Sendo assim, para quê aderir às regras? Por outro lado, viver a vida de marginal e de pária é extremamente difícil e muitos correm o risco se desmoronar psicologicamente no processo. Deste modo, são requeridos tipos muito especiais de adaptação, adaptações essas que, por seu turno, aumentam ou pelo menos confirmam a perspectiva externa do "junky louco".

Em geral, para o consumidor de drogas uma das experiências mais dolorosas é algo de um valor altamente subjectivo, o estado de consciência induzido pela droga, é totalmente inaceitável para os outros. Ou, dito por outras palavras, uma parte central da sua identidade é socialmente inaceitável. Para alguns consumidores abusivos e regulares isto significa dizer adeus ao uso de drogas, mas para a maioria significa dizer adeus ao seu velho mundo social e aos seus critérios sobre os comportamentos que são socialmente aceitáveis. Este processo acontece em todos os lugares e não se restringe a países específicos. Ao contrário do que se ouve frequentemente, também nos Países Baixos a atitude do público em relação à heroína e aos consumidores de drogas junquificados é extremamente negativa. Deste modo, os riscos sociais do uso regular de heroína são elevados. Muito elevados, e na minha opinião, da maior importância, bem acima de qualquer risco de natureza farmacológica. Mas há diferenças consideráveis, quer nos modos em que os riscos sociais se apresentam quer na sua gravidade. Embora o ostracismo exista em todos os países ocidentais onde ocorre o consumo abusivo de drogas ilegais, a sociedade pode organizar modos pelos quais se neutralizem, pelo menos em parte, estes efeitos. Voltaremos mais tarde a esta noção de compensação.

Discutiremos agora, por ordem arbitrária, alguns outros elementos que podem explicar as diferenças assumidas na miséria junky entre os Países Baixos, por um lado, e a Alemanha e a Suíça, por outro. A existência e acessibilidade de várias opções de assistência são um deles.

A economia da droga

As drogas são relativamente baratas nos Países Baixos. Não apenas as drogas socialmente mais aceites como o tabaco, o álcool e a cannabis, mas também a heroína e a cocaína. O preço da heroína é como já mencionei de um terço a um quinto do preço da heroína nos dois outros países. Também, a pureza da heroína, principalmente a variedade de pó de cor castanha clara, é, de acordo com fontes não oficiais, decente e bastante regular. [7] A maioria dos consumidores é capaz de comprar, no mercado negro, um quarto de grama por cerca de Dfl 25. Uma hora na discoteca é mais cara. Para além disso, quando um consumidor não tem os Dfl 25 necessários para comprar uma pequena dose, é capaz de encontrar metadona no mercado negro. Por 5 mg de metadona o consumidor paga cerca de Dfl 2.50. Isto significa que com uns meros Dfl 10 consegue comprar-se uma dose de metadona suficiente para lidar com os sintomas de abstinência. Como se pode compreender, esta situação retira à existência junky um pouco de pressão e stress.

A economia de sobrevivência pessoal

No grande estudo sobre a população consumidora em Amsterdão publicado por Korf em 1990, encontra-se que 85% dos elementos dessa população recebem ajuda económica básica por parte de um dos esquemas sociais em curso nos Países Baixos. Para 39%, esta forma de ajuda é também a fonte de rendimentos principal e para 44% uma fonte importante. Outras fontes de rendimento são o negócio de sexo e a venda de droga a terceiros, mas estes são menos seguros e regulares. Praticamente um em dez tem trabalho regular e aproximadamente 13% têm fontes estritamente ilegais como meio de rendimento principal.

Na sua economia pessoal existe um amplo leque de escolha. Não apenas Grapendaal (1989) mas também Korf (1990) descobriram que, em média, os consumidores abusivos de droga em Amsterdão cobrem primeiro as suas necessidades básicas de sobrevivência e só depois gastam o resto das suas disponibilidades em drogas. A média semanal de gastos com drogas é de Dfl 575. E o valor da mediana dos gastos com droga é de Dfl 350. Grosso modo, um terço desta soma é gasto (média/mediana) na satisfação das necessidades básicas de sobrevivência como a comida, a habitação, a electricidade e o aquecimento.

Para os consumidores que verificam repetidamente não serem capazes de administrar a sua economia de sobrevivência pessoal, foi disponibilizado um serviço que é chamado de "administração básica de rendimentos". Se um cliente assim o desejar, todos os seus rendimentos legais são administrados por uma instituição que se encarrega dos custos de sobrevivência básicos. O valor restante é liquidado em prestações diárias ao cliente. Este serviço é muito popular entre um determinado tipo de consumidores abusivos de droga (ver Schagen, 1991). É claro que é ainda muito importante a disponibilidade de habitação para os consumidores abusivos de heroína. Muitos deles, até mesmo dos chamados "Consumidores extra problemáticos" investigados por Derks (1990), mantêm as suas casas cuidadas e num estado decente. Para observações semelhantes, ver o estudo de Korf et al. sobre consumidores de droga numa área rural (Korf et al, 1989). [8]. Isto significa que para muitos consumidores regulares de opiáceos nas condições verificadas em Amsterdão predomina a manutenção de uma integração social mínima. A situação não deve ser muito diferente nas outras cidades dos Países Baixos. Sem qualquer certeza podemos assumir que a manutenção destas condições sociais contraria a junkificação. A acessibilidade dos serviços sociais que apoiam a integração social é maior nos Países Baixos do que noutros lugares, o que pode ajudar a explicar as diferenças nos níveis de junkificação.

Neutralizar os efeitos do ostracismo social

Nos Países Baixos, os consumidores abusivos de droga não são socialmente aceites. Uma simples visita ao metropolitano de Amsterdão ou de Roterdão evidencia esse aspecto a qualquer estrangeiro. Ao mesmo tempo, a sociedade holandesa usa uma das suas características para neutralizar os seus efeitos a um modo de expressão mínimo. Esta característica reside no sistema sócio económico holandês ter gerado, durante os últimos quarenta anos, uma imensa variedade de instituições de prestação de cuidados e de ajuda orientados para um grande número de grupos, subgrupos e subgrupos de subgrupos. Exagerando um pouco, não ficaria surpreendido se a Fundação dos Fotógrafos Cegos e Canhotos mantivesse uma filial especial para apoiar os sócios que têm dificuldades por viverem em ruas onde passa o eléctrico. De alguma maneira haverá um sistema de apoio médico e social para quase todos os subgrupos, claro que financiado maioritariamente por Haia ou por uma fonte privada. Numerosos grupos, especialmente aqueles que são social ou economicamente fracos, encontraram algum tipo de instituição que, ou lhes prestará cuidados, ou organizará a prestação dos cuidados. No caso dos consumidores abusivos de heroína, os últimos dez anos viram nascer uma grande variedade de instituições de prestação de cuidados financiadas pelo Estado, que são uma parte essencial para compreender os níveis da miséria junky nos Países Baixos.

Um dos mais importantes sistemas de apoio é, claro está, o económico que opera para todos os pobres e que é usado por grande parte dos consumidores abusivos de drogas. Segundo, todas as cidades, grandes ou pequenas têm unidades locais do Departamento de Saúde especialmente dedicadas aos consumidores abusivos de droga. Tais Instituições têm a seu cargo a distribuição de metadona, a prestação de cuidados de saúde e, quando necessária, a intervenção médica em situação de crise. Em muitas destas instituições de prestação de cuidados de saúde existe um representante do sistema de assistência social, o que significa que os consumidores abusivos de droga recebem ajuda para encontrar uma casa, para resolverem problemas com os seus senhorios, para resolverem problemas com os seus filhos, para resolverem problemas com a Companhia de Electricidade quando as contas não são liquidadas, etc.. Eu não digo que tal ajuda é necessária frequentemente, ou que estas instituições são sempre eficientes, ou que as pessoas que trabalham nesses serviços são sempre agradáveis com os seus clientes, mas estão disponíveis e são utilizados na prática. Além de que nas cidades maiores, a manutenção com metadona foi diversificada assumindo muitas formas diferentes, bem como a prestação de cuidados de saúde. Em Amsterdão, cerca de metade da distribuição da metadona é efectuada pelo canal normal e regular do médico de clínica geral. A outra metade é dividida entre uma distribuição sem compromissos efectuada pelas carrinhas da metadona, e sistemas ligeiramente mais controlados e severos, orientados para a abstinência total, fazendo recurso ao controlo sistemático da urina, e eliminando dos programas os elementos que não respeitam as regras. Para os diferentes regimes e necessidades de metadona há uma solução. Todos estes sistemas são bastante acessíveis [9].

Este nível relativamente elevado de diversificação não só na manutenção com metadona mas também dos serviços de apoio económico ou outros é um dos factores mais essenciais entre os elementos explicativos para a verificação de um nível mais baixo de miséria junky nos Países Baixos do que na Alemanha ou na Suíça. Note-se que não afirmo que a miséria junky está ausente. Mas caso seja necessário há alguma forma de ajuda disponível, o que significa uma forte redução do impacto dos riscos sociais do consumo abusivo de drogas. O mais terrível dos riscos para um ser humano é não ser tratado como tal, o que tem efeitos altamente destrutivos. Esses efeitos destrutivos são parte da miséria conhecida pelos junkies como Junky Elend. Se já é negativo que as instituições tenham que substituir uma boa parte da comunicação interpessoal normal e da compaixão, a ausência de tais instituições seria pior.

A polícia

No estudo de Bossongs e Stöver "Methadon" (1989) um junky alemão diz em relação a um momento na sua vida: "Ich war am Ende, meine Familie war zerbrochen, die Freunde fort. Für mich begann damals der Teufelskreis Sucht-Verfolgung-Inhaftierung" [10]. Também nos Países Baixos aproximadamente 25% dos detidos foram presos devido a delitos supostamente relacionados com droga. Mas nenhuma dessas pessoas está lá devido a consumo, e muito poucos devido a situações de pequeno tráfico. A política de prender os consumidores abusivos de droga por terem sido apanhados em flagrante a injectarem-se, a fumarem ou a comprarem uma pequena quantidade de drogas é coisa do passado. Nem sequer o tráfico em pequena escala levado a cabo em apartamentos está sujeito a interferência caso não existam reclamações dos vizinhos. Poderíamos dizer que na prática diária, o consumo e a venda para consumo já não são objecto de interferência policial. Deste modo é afastada dos consumidores abusivos de droga muita da pressão a que estão sujeitos noutros locais, o que contribui para explicar outra parte da menor visibilidade da junky elend nos Países Baixos.

Comentários finais

Apresentei algumas explicações possíveis para o nível da miséria junky ser assumido como menor nos Países Baixos do que na Alemanha ou na Suíça. Ao fazê-lo troquei a perspectiva de uma explicação basicamente farmacológica da miséria junky para uma social. O núcleo da miséria junky é igual ao da miséria verificada em outros grupos de pessoas desprivilegiadas de muito maior dimensão nas nossas culturas industrializadas. No que se refere aos consumidores abusivos de drogas, particularmente opiáceos, o que se passa é que estes factores são ampliados n vezes.

Lidar com a miséria junky partindo de uma visão farmacológica do problema não é suficiente, nem de longe. Embora as drogas e a sua economia tenham algum impacto no nível de miséria junky, não as vejo como factores directamente activos mas como factores indirectos. As drogas e a sua economia afectam a miséria junky pelo nível de riscos sociais com que os junkies se confrontam. O risco social que causa grande parte da miséria junky é o ostracismo, ou já não ser tratado como um ser humano por grandes segmentos de terceiros importantes e pelas instituições da sociedade. São necessários sistemas de apoio sociais e psicológicos para pessoas pobres, e muito mais para consumidores de droga marginalizados.

As estratégias mais promissoras para diminuir os níveis ameaçadores da miséria junky na qual os junkies morrem, residem em interferir no processo de ostracismo social criando instituições neutralizadoras. Estas instituições têm que trabalhar ao nível dos problemas diários vividos pelos consumidores abusivos de droga e não ao nível de abordagens farmacológicas ou psicológicas monolíticas dos seus problemas. Se os problemas diários dos junkies forem tomados como ponto de partida para uma política de apoio, rapidamente se descobrirão quais os problemas específicos que devem ter uma abordagem farmacológica ou psicológica.

Seria extremamente interessante descobrir se podem ser medidos níveis diferentes de junkificação, e se níveis mais baixos de junkificação estão associados a condições sociais que impõem uma pressão social menor sobre a vida dos junkies. Seria também necessário descobrir se a existência de sistemas de assistência social, que a um certo nível compensem o ostracismo social, prolongam as carreiras junky conforme foi sugerido por Leuw, ou se, pelo contrário, as encurtam na medida em que as forças sociais responsáveis pela manutenção dos junkies no exterior da estrutura social convencional permanecem tão fortes que restam poucas escolhas.

A distribuição de heroína e de metadona terão provavelmente menos efeito sobre miséria junky do que o que seria possível, se:

  1. não estiver associada a uma aceitação do consumo abusivo de droga como um estilo de vida legítimo;
  2. não estiver disponível numa gama diferenciada de regimes de distribuição de acordo com as necessidades dos consumidores, e;
  3. não estiver associada a uma série de actividades sociais de trabalho, projectadas para compensar os efeitos destrutivos de não ser aceite na estrutura social convencional considerada normal.

Notas

Agradeço a Syn Stern, Jean Paul Grund, Charles Kaplan e Ramses Mann por terem discutido comigo este tópico.

  1. Não discutirei questões como: porque as pessoas usam a heroína de uma forma ou de outra, nem porque alguns são "viciados" e outros não.
  2. Isto significa, por exemplo, que 88% têm habitação razoável, que aproximadamente um terço dos amigos e conhecidos não são consumidores de drogas, quando têm necessidade 95% tiveram contacto com uma das instituições de assistência relacionadas com droga, e que a condição psicológica comum é pior que a do nível do "cidadão holandês normal" e melhor que a do nível do paciente psiquiátrico tratado em regime ambulatório. Para informações mais detalhadas, ver Korf, D. en Hoogenhout, H.: "Zoden aan de dijk. Heroinegebruikers en hun ervaringen met en hun waardering van de Amsterdamse drugshulpverlening" Universiteit van Amsterdam 1990.
  3. Engbersen, G.: "Moderne armoede: feit en fictie" , Sociologische Gids, 1991/1 página 7-22.
  4. Na realidade nenhum consumidor abusivo de heroína consome apenas heroína. Muitos consomem também em diferentes graus: álcool, tabaco, drogas farmacêuticas e cocaína. Mas isto é verdadeiro para os três países aqui referidos.
  5. Zinberg, N., "Drug, Set and Setting" Yale 1984. Para mais referências sobre literatura relativamente ao "uso controlado de heroína" Yates, A.: " The natural history of Heroin Addiction" In: Warburton, D. (Ed.): "Addiction Controversies" Chur, 1990.
  6. Actualmente Korf está a executar um estudo de relação preço-pureza em Amsterdão, comprando amostras de cinco drogas ilícitas várias vezes por mês em diferentes sectores do mercado. Estas amostras são analisadas no que diz respeito à qualidade e ao peso pela agência local do Laboratório Policial de Estupefacientes. Este estudo fornecerá os primeiros dados sistemáticos deste tipo nos Países Baixos e possivelmente na Europa.
  7. Korf. D., Mann, R. en van Aalderen, H.: "Drugs op het platteland" Assen 1989.
  8. Não deveríamos menosprezar a importância dos programas de baixo limiar. Estes programas são caracterizados por muitos aspectos, mas talvez o mais importante de um ponto de vista subjectivo do cliente é que ele seja aceite como consumidor abusivo de droga. Ele não tem que esconder tal facto. Até porque é devido a essa sua condição que ele é aceite nessas instituições. E porque o uso de heroína próximo da metadona não é uma razão para expulsar um paciente, a distribuição de metadona é para uma certa classe de consumidores uma das poucas certezas de que eles desfrutam.
  9. Isto é visto como um tipo de reconhecimento social que previne a subjectividade de um marginal, um pária total. Não sei qual o grau de verdade da ideia, mas de acordo com vários observadores, o nível de agressão entre os junkies é muito mais baixo nas cidades Holandesas do que em Hamburgo ou, por exemplo, em Nova Iorque. As pessoas facilmente compartilham droga entre si e são amigáveis. Isto é tanto mais verdade, quanto maior é a disponibilidade das várias componentes do sistema social em aceitar a identidade de consumidor de droga. Alguma aceitação externa salvaguarda alguma aceitação interna resultando em menos agressividade interpessoal.
  10. Página 117, Bossong und Stöver: Methadon, Chancen und Grenzen der Substitutionsbehandlung, Berlin 1989.